Assumindo-se como o primeiro tratado médico-botânico publicado na Ásia pelos portugueses (Goa, 1563), o “Colóquios dos Simples e Drogas da Índia” é de grande importância para se perceber a origem dos produtos, as suas rotas de circulação e os usos e aplicações das plantas medicinais da Índia. Escrito por Garcia de Orta, o médico português que rumou à Índia em 1534 e que lá permaneceu durante mais de 30 anos, registou as suas observações e inquirições culminado neste tratado constituído por 58 colóquios. Descreve essencialmente o diálogo (ou, se queiramos, o colóquio) entre dois médicos, a saber: Ruano, que tinha acabado de chegar à Índia e Orta, que já tinha acumulado bastante experiência em solo indiano. Têm a oportunidade de discursar sobre os sinónimos, a história, a origem, as rotas, os preços das drogas e especiarias asiáticas. Seja na casa de Orta ou mesmo nas ruas, os médicos encetavam um diálogo bastante vivo sobre as práticas dos médicos muçulmanos e ayurvédicos. E é neste texto que as referências ao Ayurveda, a ciência, estilo de vida e medicina, aparece muito possivelmente pela primeira vez aos olhos de um português.
Quem se debruce pela sua análise textual, consegue dividir as diferentes referências ayurvédicas encontradas em, pelo menos, três categorias: testemunhos gerais de práticas ayurvédicas, as doenças e os conceitos ayurvédicos e a terminologia ayurvédica. Quanto à primeira, não podemos esquecer que Orta foi um observador privilegiado: ”os físicos indianos que conversei” (col. 34), “pergunto estas coisas aos físicos grandes, arábios e gentios” (col. 36), ”e se o usam muito os fisicos indianos”, ao falar sobre o esquinanto, Andropogon laniger, no colóquio 52. Conseguiu, ainda, descrever a febre e o respectivo tratamento utilizando práticas ayurvédicas (col. 27), observar o diagnóstico ayurvédico do pulso aquando do tratamento daquela doença utilizando-se esse método e concluir qual o humor (ou melhor, o dosha) que está em desequilíbrio (col. 36), fazer a descrição de especiarias como o gengibre registando algumas das qualidades comuns ao Ayurveda (col. 26), entre outros exemplos da sequnda categoria. Por fim, é na terceira que nos deparamos com nomes de plantas semelhantes ao seu equivalente ayurvédico. Assim, a assa-fétida, que toma o nome de hiṅgu, aparece-nos registada como Imgu (col. 7) e o gengibre fresco, a que Orta deu o nome de Adrac, toma o nome de ārdraka no Ayurveda.
Não se poderia deixar de referir que é, possivelmente, o primeiro tratado que grafa o nome do grande sábio ayurvédico, Charaka, num texto em língua europeia pois, eis que nos surge no colóquio 37 a seguinte menção: “… alegando a Xarach…” Mas mais exemplos respeitantes a esta ciência tão antiga poderão ser encontrados pelo leitor mais atento. Contudo, tal não é objecto do presente trabalho. Por agora, continuaremos na senda do entendimento que as relações entre Portugal e o Ayurveda remontam ao século XVI, que são bastante antigas (e sólidas) mas pouco conhecidas. Decerto que Garcia de Orta não esperaria outro desenlace pois gostava muito de afirmar: “O que hoje não sabemos, amanhã saberemos”.
Prof. Doutor Paulo Meira
Professor de Sânscrito (Centro de Línguas e Licenciatura em Estudos Asiáticos), e Ayurveda (Centro de Estudos Indianos) Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa