Vivemos em tempos de maior evidência de doença mental. Quando uma sociedade perceciona que tem muitos cidadãos em sofrimento psicológico – com ansiedade, depressão, burnout, stress pós-traumático…- fará sentido continuar a falar da doença mental como um problema individual? Acreditamos que não.
E ao pensarmos a doença mental como algo sistémico e associado ao funcionamento societal, que relação terá ela com a paz?
A literatura científica mostra que a integração dos campos dos estudos da paz e da saúde mental é pouco comum, mas a sua interdependência é indiscutível. Sendo complexa e multidimensional, a relação entre ambas leva-nos a refletir que a paz sustentável será ilusória se não tivermos em conta aspetos estruturais e psicossociais do funcionamento da sociedade, e que a doença mental é também dependente desses aspetos sistémicos. Para compreendermos estes processos, precisamos alterar a ênfase mais convencional, e frequentemente exclusiva, no diagnóstico e tratamento da pessoa individual com problemas psicológicos, comportamentais e emocionais, e focar-nos antes no escrutínio dos processos sociais de interface. Precisamos também, talvez ainda mais, de pensar a paz nas suas dimensões profundas institucionais e de organização da sociedade, e não apenas (ainda que também) enquanto uma experiência pessoal interna de serenidade e harmonia.
Ambientes e sociedades pacíficos têm o potencial de impactar positivamente a saúde mental em vários níveis, enquanto a ausência de paz pode contribuir para os maiores desafios da saúde mental. Pense-se nos efeitos trágicos da guerra, da emigração forçada, da exclusão, da pobreza, da crise ambiental, da falha aos direitos humanos…todas elas situações estruturais na sociedade atual e todas com consequências tremendas na construção da paz e na saúde mental das populações.
Se, por um lado, a paz positiva duradoura se enraíza na equidade e justiça social, na realização das necessidades humanas básicas, na igualdade económica, no equilíbrio ecológico e na eliminação da violência indireta que sustente formas harmoniosas e igualitárias de qualidade de vida para todos os cidadãos, a paz negativa – sejam conflitos armados ou não armados – tem hediondos efeitos sociais e psicológicos.
Adicionalmente, a doença mental, e as suas causas e contextos – tais como traumas pessoais não resolvidos e traumas intergeracionais, incapacidade de gerir emoções e ações de micro-violência, desigualdade social, desarmonia e polarização política – podem contribuir para conflitos e perturbar a paz. Isto implica uma visão mais ampla da saúde mental, no sentido da responsabilidade relacional, da paz e do compromisso coletivo e político.
As políticas que dão prioridade à promoção da saúde mental, à justiça social, à igualdade, à inclusão e à participação, bem como à prevenção de conflitos e à sua resolução harmoniosa quando surgem, podem melhorar a paz positiva e a saúde global.
Uma solução possível nessa direção pode ser o envolvimento e compromisso das comunidades, os quais podem ser definidos como “um processo estratégico para envolver diretamente as populações locais em todos os aspetos da tomada de decisões e da implementação, a fim de reforçar as capacidades locais, as estruturas comunitárias e a apropriação local, bem como melhorar a transparência, a responsabilidade e a otimização da atribuição de recursos em diversos contextos. Na conjuntura da construção e manutenção da paz, o envolvimento da comunidade é geralmente efetuado através de parcerias com um vasto leque de atores locais da sociedade civil, enquanto intermediários que trabalham na esfera da construção da paz”. (ONU, 2020, p. 1).
O objetivo é um enfoque nos recursos comunitários, conversacionais e políticos, que podem construir mundos humanos de proximidade, num processo de construção de espaços sociais que criem espaço e sustentem processos transformadores e otimizem uma compreensão sensível e crítica de como o diálogo – em especial os diálogos improváveis, entre atores sociais que habitualmente não se cruzam, incluindo os que estão em posições polarizadas, sejam politicas, religiosas, culturais, desportivas, geracionais…- constrói pessoas, comunidades, e espaços sociais de capacidades e aumenta as possibilidades de melhores vidas comuns.
Um estar colaborativo e empático com os outros, gerador de conexões positivas socialmente interventivas – com ética relacional, presença radical, pressupostos apreciativos e focados na solução – com questionamento consistente das questões sociais mais prementes, alimenta a esperança coletiva, a confiança, a curiosidade, a imaginação, a criatividade e o permanente respeito e aceitação das diferenças e da abertura à riqueza da diversidade. Em tempos de ameaça ao diferente, e de extremismos, manter estes diálogos abertos e construtivos, e trabalhar nas (e as) comunidades locais, pode ser vital, nomeadamente na construção da esperança coletiva.
Concluindo, a saúde mental e a paz são interdependentes e influenciadas por uma combinação de fatores individuais, sociais e ambientais comuns. Por conseguinte, a criação de uma sociedade pacífica, justa, solidária, democrática e inclusiva promoverá, tanto a paz, quanto a saúde mental. Assim, criar um círculo virtuoso que fomenta, simultaneamente, a paz e a saúde mental, pode ser crucial para um trabalho global ena direção do bem-estar das pessoas e das sociedades.
Helena Águeda Marujo
Fontes:
Marujo, H. Á. (2023). The nexus between peace and mental well-being: contributions for public happiness, Mental Health and Social Inclusion, Vol. ahead-of-print No. ahead-of-print. https://doi.org/10.1108/MHSI-07-2023-0077, ISSN: 2042-8308
ONU (2020). United Nations Community Guidelines on Peace Building. Acedido em 23 de junho de 2024 de https://www.un.org/peacebuilding/sites/www.un.org.peacebuilding/files/documents/un_community-engagement_guidelines.august_2020.pdf